Leia os textos abaixo com atenção, pois serão utilizados em breve!
La Boétie, Etienne – Discurso
da Servidão Voluntária
TEXTO 1
No momento, gostaria apenas que
me fizessem compreender como é possível que tantos homens, tantas cidades,
tantas nações às vezes suportem tudo de um Tirano só, que tem apenas o poderia
que lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto aceitam
suportá-lo, e que não poderia fazer-lhes mal algum se não preferissem, a
contradize-lo, suportar tudo dele. Coisa realmente surpreendente (e no entanto
tão comum que se deve mais gemer por ela do que surpreender-se) é ver milhões e
milhões de homens miseravelmente subjugados e, de cabeça baixa, submissos a um
jugo deplorável: não que a ele sejam obrigados por força maior, mas porque são
fascinados e, por assim dizer, enfeitiçados apenas pelo nome de um que não
deveriam temer, pois ele é só, nem amar, pois é desumano e cruel para com todos
eles. Tal entretanto é a fraqueza dos homens! Forçados à obediência, forçados a
contemporizar, divididos entre si, nem sempre podem ser os mais fortes.
Portanto, se uma nação, escravizada pela força das armas, é submetida ao poder
de um só (como foi a cidade de Atenas à dominação dos trinta tiranos), não é de
se espantar que ela sirva, mas de se deplorar sua servidão, ou melhor, nem
espantar-se nem lamentar-se: suportar o infortúnio com resignação e reservar-se
para uma ocasião melhor no futuro.
TEXTO 2
Mas, ó Deus!, o que é isso? Como
chamaremos esse vício, esse vício horrível? Não é vergonhoso ver um número
infinito de homens não só obedecer mas rastejar, não serem governados mas
tiranizados, não tendo nem bens, nem parentes, nem crianças, nem sua própria
vida que lhes pertençam? Suportando as rapinas, as extorsões, as crueldades,
não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais cada um
deveria defender sua vida a custo de todo o seu sangue, mas de um só: não de um
Hércules ou de um Sansão, mas de um verdadeiro homenzinho, amiúde o mais
covarde, o mais vil, e o mais efeminado da nação, que nunca cheirou a pólvora
das batalhas, quando muito pisou na areia dos torneios; que é incapaz não só de
comandas os homens mas também de satisfazer a menor mulherzinha! Nomearemos
isso covardia? Chamaremos de vis e covardes os homens submetidos a tal jugo? Se
dois, três, quatro cedem a um, é estranho, porém possível: talvez se pudesse
dizer, com razão: é falta de fibra. Mas se cem, se mil deixam-se oprimir por um
só dir-se-ia ainda que é covardia, que
não ousam atacá-lo, que por desprezo ou desdém não querem resistir a ele?
Enfim, se não se vê que cem, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens
não atacarem, não esmagarem aquele que, sem prurido algum, trata-os todos como
igual número de servos e de escravos – como qualificaríamos isso? Será
covardia? Mas para todos os vícios há limites que não podem ser superados. Dois
homens e até dez bem podem temer um, mas que mil, um milhão, mil cidades não se
defendam contra um só homem! Oh! não é só covardia, ela não chega a isso –
assim como a valentia não exige que um só homem escale uma fortaleza, ataque um
exército, conquiste um reino! Que vício monstruoso então é esse que a palavra
covardia não pode representar, para o qual toda expressão, que a natureza
desaprova e a língua se recusa a nomear?…
TEXTO 3
Mas voltando ao meu assunto, que
quase perdera de vista: a primeira razão pela qual os homens servem voluntariamente é que nascem servos e são
criados na servidão. Desta ocorre naturalmente esta outra: sob os tiranos, os
homens nascem necessariamente covardes e efeminados, como, em meu entender,
chamou a atenção bastante judiciosamente o grande Hipócrates, pai da medicina,
num de seus livros intitulado Das Doenças. Esse homem, digno por certo, tinha
bom coração e bem o mostrou quando o rei da Pérsia quis atrai-lo para junto de
si, à força de ofertas e grandes presentes; pois respondeu-lhe francamente que
teria problemas de consciência ao ocupar-se em curar os Bárbaros que queria
destruir os Gregos e fazer algo que pudesse ser útil àquele que queria subjugar
a Grécia, sua pátria. A carta que lhe escreveu a esse respeito encontra-se
entre as outras obras, e testemunhará para sempre seu bom coração e seu belo
caráter. Portanto, é certo que com a liberdade se perde imediatamente a
valentia. Os escravos não tem ardor nem constância no combate. Só vão a ele como
que obrigados, por assim dizer, embotados, livrando-se de um dever com
dificuldade: não sente queimar em seu coração o fogo sagrado da liberdade, que
faz enfrentar todos os perigos e desejar uma bela e gloriosa morte que nos
honra para sempre junto aos nossos semelhantes. Entre os homens livres, ao
contrário, é a porfia, cada qual melhor, todos por um e cada um por todos:
sabem que colherão uma parte igual no infortúnio da derrota ou na felicidade da
vitória; mas os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade, tem o coração
baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem sabem os
tiranos; assim, fazem todo o possível para torná-los sempre mais fracos e
covardes.
TEXTO 4
Assim o tirano subjuga os súditos
uns através dos outros. É guardado por aqueles de quem deveria se guardar, se
não estivessem aviltados; mas, como bem se disse, para rachar lenhas faz-se cunhas
da própria lenha. Assim são seus arqueiros, seus guardas, seus alabardeiros.
Não que eles mesmos freqüentemente não sofram com sua opressão, mas esses
miseráveis, amaldiçoados por Deus e pelos homens, contentam-se em suportar o
mal para fazê-lo, não àquele que lhe malfaz, mas aos que, como eles, o suportam
e nada podem fazer. E. no entanto, quando penso nessa gente que adula o tirano
com baixeza para explorar ao mesmo tempo sua tirania e a servidão do povo,
surpreendo-me quase tanto com sua estupidez quanto com sua maldade. Pois, em
verdade o que é aproximar-se do tirano senão distanciar-se da liberdade e, por
assim dizer, abraçar a apertar com as duas mãos a servidão? Que por um momento
ponham de lado sua ambição, que se livre um pouco de sua sórdida avareza, e depois, que se olhem, que considerem-se a
si mesmos: verão claramente que os aldeões, ou camponeses que espezinham e
tratam como forçados ou escravos, verão, digo, que esses, assim maltratados,
são mais felizes e de certo modo mais livres do que eles. O lavrador e o
artesão, por mais subjugados que sejam, ficam quites ao obedecer; mas o tirano
vê os que o cercam trapaceando e mendigando
seu favor. Não só é preciso que façam o que ordena mas também que pensem
o que quer e, amiúde, para satisfazê-lo, que também antecipem seus próprios
desejos. Não basta obedecê-lo, é preciso aguardá-lo, é preciso que se
arrebentem, se atormentem, se matem dedicando-se aos negócios dele; e já que só
se aprazem com o prazer dele, que sacrifiquem o seu gosto pelo dele, forcem seu
temperamento e o dispam de seu natural. É preciso que estejam incessantemente
atentos às palavras dele, à voz dele, aos olhares dele, aos mínimos gestos
dele: que seus olhos, seus pés, suas mãos estejam incessantemente ocupados
seguindo ou imitando todos os seus movimentos, espiando e adivinhando suas
vontades e descobrindo seus mais secretos pensamentos. Isso é viver feliz? Isso
é mesmo viver? Há no mundo algo mais insuportável que essa condição, não digo
para todo homem bem nascido, mas apenas para aquele que tem grande bom senso ou
mesmo figura de homem? Que condição é mais miserável que a de viver assim, nada
tendo de seu e recebendo de um outro sua satisfação, sua liberdade, seu corpo e
sua vida!!
TEXTO 5
Certamente, o tirano nunca ama
nem é amado. A amizade é um nome sagrado, uma coisa santa: só pode existir
entre pessoas de bem, nasce da mútua estima e se mantém não tanto através de
benefícios como através da boa vida e costumes. O que torna um amigo seguro do
outro é o conhecimento de sua integridade. Como garantias, tem seu bom natural,
sua fé, sua constância; não pode haver
amizade onde se encontram a crueldade, a injustiça. Entre os maus quando
se juntam, há uma conspiração, não uma sociedade. Eles não se entre apoiam mas
se entretelem. Não são amigos, mas cúmplices.
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Leitura complementar.
Arendt, Hannah. As
Origens do Totalitarismo.
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